[Opinião] Um descompassado sentido de modernidade
Atenta à lei que autoriza a instalação de engenhos de publicidade luminosos no centro de BH, a professora Vanessa Brasileiro imagina uma cidade em que tudo que foi construído será apagado no futuro

Belo Horizonte, 2049. Sobrevoo o eixo da avenida longa, partindo dos vestígios de escarpas assimétricas, no limite sul da cidade. Outros veículos cruzam meu traçado, em rotas calculadas pelas inteligências artificiais que nos controlam, enquanto pairo à meia altura – em voo de pássaro, diriam no Oitocentos – próximo o bastante da superfície para me possibilitar identificar pessoas que apressadamente cruzam vazios retilíneos, naquilo que um dia foram ruas. Por todo lado, vejo massas construídas indistintas, identificáveis apenas pelos dizeres luminosos: “Beba Coca-cola!".
Busco sem sucesso algum neon que indique “Padaria Savassi”, que, pelas coordenadas, deveria estar ali; desconfio da precisão de minha memória ou de minha vista, jamais dos instrumentos. Sigo adiante por uma antiga alameda cercada por construções de linhas clássicas apagadas pela ruína, a natureza (felizmente) ainda resiliente. Onde as fachadas são ainda vistas, porcelanatos se descolam como papel contact, sombras falsas de materiais naturais. Sobrevoo uma igreja e sua praça; diante dela outra praça e outra praça, ladeadas por uma sequência de arranha-céus que competem em altura com o templo; suas torres foram vencidas. Um aparente respiro verde na paisagem: dizem que o parque um dia foi grande e abrigou animais silvestres na cidade que chamavam de “vergel”.
Chego a meu destino. Os luminosos que me perseguiram por quase todo o caminho não me ofuscam a vista, os leds antigos já esmaecidos, sinais da supostamente avançada tecnologia que um dia foram. Apenas o duro gnaisse do obelisco ao centro sobrevive, incorruptível no tempo.
Poderia tal distopia ser realidade em nossa cidade? A julgar pelas possibilidades tecnológicas que a cidade sempre abraçou, talvez sim. A julgar pelas visões avessas da modernidade, certamente. Não tratarei da primeira, posto que não sou especialista; interessa-me aqui apontar o quanto a capital mineira, fundada sob a égide da liberdade republicana, desenhou para si faces diversas ao longo de sua história, e o quanto dessas podemos ainda ver, longe de nossos sobrevoos imaginários.
Belo Horizonte, dirá minha cara colega de Departamento, professora Celina Borges Lemos, nasce moderna e sistematicamente esforça-se por espelhar essa modernidade abraçando novas faces em seus edifícios. Nos tempos da cidade nascente, erguida sob as linhas ecléticas, desconstrói o Curral del Rei, pequeno arraial de papudos que viviam em casas de pau a pique. O esforço da reconstrução dessa memória apagada vem sendo empreendido por diversos pesquisadores, como Adriane Garcia, autora de Arraial do Curral del Rei: a desmemória dos bois, apoiados no fundamental trabalho do Arquivo Público da Cidade de salvaguarda dos documentos que nos propiciam fazer aflorar nossa história.
Os frenéticos anos 1930 viram surgir cinemas e arranha-céus, com elementos geométricos que aspiravam racionalidade e respiravam pó de pedra. Ainda menina, Beagá dança ao sabor das sinuosas linhas niemeyerianas, e os arquitetos da nova Escola – fundada em 1930, sua nova sede foi finalizada em 1949 – se empenharam em dar novo e moderno caráter à urbe: Edifício Clemente de Faria (1946-1950, de Álvaro Vital Brasil, premiado na 1ª Bienal de Arquitetura de São Paulo-1951), Edifício Bemge (1953, projeto de Oscar Niemeyer), Edifício Joaquim de Paula (projetado por Ulpiano Nunes Muniz entre 1955 e 1959), Edifício Helena Passig (obra de Raphael Hardy Filho, datada de 1957).
Tampouco rememoro uma Belo Horizonte que não vivi. Aceito as camadas da história, resiliente com o fato de que elas são o retrato da cidade. Mas isso, acredito, é o que a cidade até aqui desejou ser, e essa visão progressista, desmesurada e descabida hoje não mais ecoa em todas as vozes que falam da cidade.
Se por um lado fizeram erguer edifícios exemplares de nossa arquitetura – me ative aos exemplos na Praça 7, aos quais se agregam a Antiga Sede do Banco Hipotecário e Agrícola (de Luiz Olivieri, inaugurado em 1922) e o Cine Theatro Brasil (inaugurado em 1932, projeto de Alberto Murgel) –, por outro, abriram caminho para uma vertiginosa transformação da paisagem, resultado da dinâmica especulativa sobre o solo acentuada com o dito “milagre econômico” dos anos 1970, que deu continuidade ao sistemático processo de construção-demolição-reconstrução. Nesse sentido, o arquiteto belo-horizontino Carlos Teixeira analisa: “Não tenho a menor intenção de relembrar a Belo Horizonte idílica de Aarão Reis. Aquela cidade não existe mais; jaz sob o tecido caótico de uma cidade que partiu do nada, explodiu metrópole em 100 anos e ignorou todas as boas intenções de seu plano original”.
Tampouco rememoro uma Belo Horizonte que não vivi. Aceito as camadas da história, resiliente com o fato de que elas são o retrato da cidade. Mas isso, acredito, é o que a cidade até aqui desejou ser, e essa visão progressista, desmesurada e descabida hoje não mais ecoa em todas as vozes que falam da cidade – e a Universidade, em sua composição diversa e democrática, é uma delas. E essas vozes não se calam, com o risco de, em um futuro bem próximo, voltarmos ao primeiro parágrafo deste texto, em uma contínua autofagia de nossas criações versadas para um futuro que sempre será corroído, em um “cenário citadino com o estilo das coisas que não têm estilo”, como bem disse a professora Heloísa Starling em artigo publicado pela revista Margens sobre as fantasmagorias na cidade.
A nós, arquitetos, essa eterna reconstrução tem nos custado caro. Incríveis planejadores das novas formas, somos ao mesmo tempo algozes e vítimas desse processo. O que hoje projetamos, amanhã será apagado, e essa é uma perigosa sina.
A nós, coletividade, essa reconstrução tem nos custado igualmente caro. Seu enfrentamento começou a ser empreendido em 1984, em um esforço coletivo de preservação, por meio da representação dos vários setores da sociedade e dos institutos públicos no Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município. Esses 40 anos de intensas e dedicadas atividades de técnicos e conselheiros foram fundamentais para outra construção: a compreensão daquilo que entendemos ser a imagem de nós mesmos, por meio daquilo que construímos ao longo de nossa breve história de 127 anos. Ao menos do que dela restou.
A nós, arquitetos, essa eterna reconstrução tem nos custado caro. Incríveis planejadores das novas formas, somos ao mesmo tempo algozes e vítimas desse processo. O que hoje projetamos, amanhã será apagado, e essa é uma perigosa sina.
Atenta aos riscos de transformação em nossa paisagem e de desconstrução de nosso patrimônio cultural, a Egrégia Congregação da Escola de Arquitetura da UFMG publicou, em 18 de março, moção de repúdio à Lei nº 11.828, de 7 de março de 2025, que altera o Código de Posturas do Município (Lei nº 8.616/03) e cria a Área de Promoção da Cidade – Praça Sete de Setembro, autorizando a instalação de grandes engenhos de publicidade luminosos no centro de Belo Horizonte.
Se aplicada, a lei permitirá que outdoors luminosos de última geração – não se engane o desavisado leitor, a tecnologia rapidamente cairá em obsolescência – sejam sobrepostos às fachadas das edificações históricas, redesenhando não apenas sua face, mas a imagem do lugar, destituindo-o de seus valores simbólicos. A praça, democrática como deve ser todo e qualquer espaço público urbano, amálgama da diversidade em manifestações políticas, de lazer e esporte, lugar da festa e do encontro para o historiador francês Jacques Le Goff, cederá espaço ao privado, ao especulativo, a um descompassado sentido de modernidade.
Apenas o duro incorruptível gnaisse do obelisco sobreviverá?