Pesquisa e Inovação

Solução para educação passa pela volta da autoridade do professor, defende António Nóvoa

Emérito da Universidade de Lisboa está na UFMG para uma série de atividades nesta semana

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António Novoa: cultura colaborativa é chave para o resgate da autoridade do professor
Foto: Jebs Lima | UFMG

Para António Nóvoa, uma das maiores autoridades do mundo no pensamento da educação contemporânea, os problemas que se tem enfrentado no campo da educação básica brasileira convergem, em sua maioria, para uma questão central: a questão da auctoritas (a “autoria”, a “autorização”, a “autoridade” profissional) do professor – ou, mais especificamente, para o fato de ela, por razões diversas, ter sido colocada em xeque nas últimas décadas. 

O professor emérito da Universidade de Lisboa desenvolveu esse argumento em palestra ministrada na tarde desta terça-feira, 28, no auditório da Reitoria. O encontro com a comunidade acadêmica de Minas Gerais ocorreu na mesa-redonda Espaços comuns de formação de professores da educação básica, parte integrante da Cátedra Fundep/Ieat Magda Soares de Educação Básica, da qual Nóvoa é titular.

O professor português exemplificou o problema com o temido “grupo de WhatsApp de pais”, um dos maiores obstáculos contemporâneos à realização do trabalho não apenas educacional, mas também ético e civilizatório dos professores da educação básica brasileira. Para Nóvoa, a emergência desses grupos – e da avalanche de críticas, ataques, pedidos, palpites e perseguições que encontraram neles a plataforma perfeita para a sua reverberação inconsequente – são a ilustração dessa perigosa perda de autoridade profissional do professor. “A maneira como se põe continuamente em causa, nesses grupos, a autoridade do professor é por si só um sintoma dessa perda de autoridade”, ele demarcou.

“Seria impensável, por exemplo, na área da medicina, que alguém pusesse em causa a autoridade do profissional médico na realização de um diagnóstico, na prescrição de um tratamento etc. Podemos protestar, claro, reclamar das condições de como somos atendidos, mas não entrar no âmbito da autoridade profissional. No caso dos professores, contudo, essa entrada no âmbito de sua autoridade é quase imediata”, pontuou o especialista. Autor de inúmeros livros sobre o tema, ele atuou como professor convidado em diversas universidades de prestígio ao redor do mundo, como Wisconsin (EUA, 1993/1994), Paris 5 (França, 1995), Oxford (Inglaterra, 2001), Columbia – New York (EUA, 2002), Brasília (Brasil, 2014) e Federal do Rio de Janeiro (Brasil, 2017).

Nóvoa fez questão de demarcar que sua grande preocupação, no âmbito de debates como aquele que se seguiria à sua palestra, é mesmo “com os professores da educação básica”. Ele disse: “Não é com a universidade, nem sequer é diretamente com a formação dos professores: é mesmo com os professores da educação básica, com a situação dos professores da educação básica. É com a difícil situação que estamos a viver no mundo e no Brasil também". 

Cármen
Carmen Gabriel coordena o projeto de formação de professores na UFRJFoto Jebs Lima | UFMG

O evento teve a participação de Carmen Teresa Gabriel, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Carmen e Nóvoa já trabalharam juntos no bem-sucedido projeto do Complexo de Formação de Professores da UFRJ, que é hoje coordenado pela professora. O projeto foi detalhado por ela logo após a palestra do português, ao que se seguiu um debate com os participantes.

Doutor em Ciências da Educação e em História Moderna e Contemporânea, António Nóvoa veio à UFMG para realizar uma série de outras atividades nesta semana. Ontem, segunda-feira, 27, ele participou do evento de formalização da Rede Mineira de Formação de Professores da Educação Básica, iniciativa institucional vinculada ao Fórum de Reitores das Instituições Públicas de Ensino Superior de Minas Gerais (Foripes/MG). Nesta quarta, 29, às 14h, o professor português se reunirá com representantes de instituições de educação superior mineiras, e na sexta, 31, pela manhã, ele vai conversar com representantes de secretarias de educação de cidades mineiras. Nóvoa conclui sua passagem pela UFMG na sexta, quando ministrará a atividade inaugural da edição 2024-2026 do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid) no auditório nobre do CAD 1, no campus Pampulha. A aula terá início às 14h.

Grupos de WhatsApp de pais são um dos grandes entraves à boa atuação de professores brasileiros
Grupos de WhatsApp de pais figuram entre os  grandes entraves para a boa atuação de professores brasileiros Foto: Marcello Casal Jr. | Agência Brasil

‘Auctoritas’: autoria, autorização, autoridade

Para explicar por que considera a autoridade do papel profissional ocupado pelo professor como o ponto central para o qual convergem os problemas enfrentados hoje no campo da educação básica, António Nóvoa recorreu ao termo latino auctoritas, a que ele relaciona três chaves, recuperando aspectos da etimologia latina da palavra: “autoridade”, “autoria” e “autorização”. Essas chaves, por sua vez, foram desdobradas por ele em três vertentes propositivas: “cultura colaborativa” (para a questão da “autoridade”), “conhecimento docente” (para a questão da “autoria”) e “compromisso público” (para a questão da “autorização”). Nóvoa disse que está sistematizando esse pensamento com vistas à publicação de um novo livro. No resumo a seguir, é possível conhecer os principais pontos já estabelecidos.

A  questão da autoridade
“Há um problema com os salários? Sim. Há um problema com as carreiras? Sim. Há um problema com as condições de trabalho? Sim. Há um problema com a violência nas escolas? Sim. De fato, há um conjunto enorme de problemas, mas, na minha opinião, por trás de todos esses, há um problema de fundo, que procuro definir por esse conceito da auctoritas: a perda da auctoritas dos professores. Esse, para mim, é o principal problema que temos de enfrentar do ponto de vista da profissão docente e dos professores, com todos os desdobramentos que isso gera do ponto de vista da escola e da educação pública. Começo então pela questão da autoridade: a autoridade reconhecida, o reconhecimento da competência profissional. Trata-se de uma dimensão ética, mas que foi se perdendo nos últimos anos. Perdendo para quem? Para a sociedade, para as famílias, para os pais. Temos perdido, nas últimas décadas, parte da nossa autoridade.”

“Essa perda de autoridade demonstra, então, a necessidade de criarmos uma cultura colaborativa: não conseguiremos resolver a questão da autoridade profissional se não incluirmos uma cultura profissional colaborativa; não conseguiremos resolver o problema apenas em nível individual. É preciso pensar nos termos de uma responsabilidade profissional colaborativa; ora, e onde se começa a construir essa cultura? Na formação dos professores! Estou a falar de uma responsabilidade central para o reforço da nossa autoridade. Professores devem se responsabilizar pela formação das novas gerações. Uma profissão que não cuida, que não se responsabiliza pela formação de suas novas gerações não consegue fazer a manutenção de sua autoridade; ela vê sua autoridade ser profundamente diminuída. É isso o que tem acontecido com os professores.”

A questão da autoria
“Quem são os autores da profissão: somos nós ou não? Somos autores da nossa profissão ou essa autoria é definida fora dela? Hoje, na prática, não somos mais autores da nossa profissão, fomos transformados em uma espécie de técnicos que simplesmente aplicam coisas que são feitas e definidas fora de sua profissão. Como ilustração, temos a extraordinária (falo em extraordinário no sentido negativo do termo) expansão de toda a indústria global da educação, de toda a mercantilização da educação com todo esse conjunto imenso de tecnologias, apostilas, manuais, livros, esse conjunto imenso de materiais que, na prática, põem em causa nossa autoria como professores e nos transformam naquilo que um colega nosso já definiu como ‘professores micro-ondas’: docentes que não têm mais espaço nem mesmo para preparar a ‘comida’, o material, o ensino. Na prática, estão limitados a aquecê-la por alguns minutos e a servi-la. Estamos a perder a capacidade de sermos autores da nossa profissão.”

“O combate a essa perda da autoria passa pelo conhecimento profissional docente, que é o buraco negro que não conseguimos resolver nas últimas décadas. De modo geral, forma-se o professor com a oferta, a ele, do conhecimento das matérias que ele ministrará e com a oferta de conhecimentos do campo das ciências da educação. Ora, a soma desses dois conhecimentos forma um professor? Não! Falta um terceiro gênero de conhecimento, que é o ‘conhecimento profissional docente’. Esse é o grande buraco negro na literatura pedagógica e no nosso trabalho, na nossa profissão. Não temos sido capazes de identificar, de reconhecer e de trabalhar o que é esse conhecimento profissional docente. Esse tem sido, no mínimo nos últimos 50 anos, o grande ausente de nossas práticas, de nossas pesquisas, de nossas teses de doutoramento, de nossa reflexão. Notem, não estou a falar de histórias de vida de professores, de narrativas pessoais: estou a falar de um conhecimento que se formaliza em uma reflexão feita ‘a partir’ dessas histórias de vida e dessas narrativas, uma reflexão a ser compartilhada com os outros colegas.”

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Mesa do seminário 'Espaços comuns de formação de professores da educação básica, que reuniu os professores António Nóvoa (à direita) e Carmen Teresa GabrielFoto: Jebs Lima | UFMG

A questão da autorização
“Quando falo em autorização, falo na capacidade que temos ou não de participar democraticamente na vida das escolas, na formação das políticas públicas, na criação e na definição do que é, propriamente, a escola pública, o modo como ela deve estar organizada etc. Falo na ideia da autorização no sentido de nos autorizarmos e de nos vermos autorizados a ter outra forma de participação no exterior da profissão, outra forma de intervenção na profissão no que diz respeito à sua dimensão externa. Os professores recolheram-se muito nas últimas décadas. Passaram a ter uma atitude defensiva, passaram a expor-se menos no espaço público, passaram a recolher-se mais no interior das escolas, a ter uma menor presença pública. Ora, não há profissão com auctoritas se essa profissão não se impuser e não se expressar no espaço público."

“No que diz respeito à autorização, o caminho passa, portanto, por um compromisso profissional público. A minha convocação é para que nós, professores, assumamos uma postura mais pública, assumamos uma voz pública. Temos de participar das políticas públicas, sem as quais não existem as profissões. Em verdade, a definição histórica de profissão, e da própria etimologia da palavra ‘profissão’, é no sentido de dizer daquele que professa publicamente uma realidade, uma determinada atividade. Sem essa dimensão pública, não há profissão. Essas três noções – autoridade, autoria, autorização – colocam os três problemas centrais que temos de enfrentar na profissão e na formação dos professores. A partir desses referentes, podemos imaginar o que deva ser uma formação de professores: uma formação que desenvolva e reforce a cultura colaborativa, que desenvolva e reforce o conhecimento profissional docente e que desenvolva e reforce o compromisso público dos professores.”

A mesa-redonda em que essas ideias foram desenvolvidas pelo professor António Nóvoa ocorreu na tarde de terça-feira, 28, no auditório da Reitoria, no campus Pampulha. Transmitida ao vivo pela internet, ela pode ser assistida no canal da Coordenadoria de Assuntos Comunitários (CAC) da UFMG no YouTube.

Ewerton Martins Ribeiro